Estou deitada com a boca aberta tentando não prestar muita atenção enquanto ela mexe em meus dentes. Olho para a frente e vejo uma bandeja repleta de instrumentos, que poderiam ser facilmente utilizados em uma sessão de tortura, em cima de mim uma grande luminária que me recorda muitas cenas do seriado Dexter. Decido que a melhor opção é fixar meu olhar na porta e, enquanto escuto o que a radialista está falando, tentar imaginar o que está acontecendo lá fora.
Meu pensamento não obedece aos meus objetivos e logo começo a recordar a conversa que tivemos logo que entrei no consultório como você limpa seus dentes? você os escova? todos os dias? quantas vezes, uma? A surpresa em seu rosto ao me escutar dizer que escovo ao menos três vezes ainda me faz rir. Resolvo olhar para a pessoa que maneja com tanto conhecimento todas aquelas espátulas. Olhos azuis e cílios enormes cobertos de rímel, posso dizer que embaixo da máscara há um sorriso, quanta satisfação em raspar meus dentes, empurrar minha gengiva e sugar o sangue que resolve aparecer. Percebo que estou com os braços cruzados, os dedos entrelaçados e uma perna sobre a outra, cruzando os pés. Logo me recordo do famoso livro O corpo fala e me esforço para abrir a caixinha na qual guardei as informações que aprendi quando o li. Acredito que minha postura significa que estou me fechando para o mundo, demonstra claramente que não estou confortável naquela situação. Descruzo tudo que estava cruzando, em uma tentativa de me mostrar mais relaxada.
Ela percebe a movimentação repentina está tudo bem? está doendo? Não, minto, está tudo ótimo, só estava me arrumando aqui na cadeira. Resolvo puxar papo, assim posso mudar a boca de posição. Fiquei aliviada por você falar inglês, a dentista que me examinou antes conversou comigo em sueco, mas saber o que está sendo feito na minha boca é melhor, não é... Ela apenas ri e ne pergunta se eu não entendo sueco enquanto coloca todas aquelas pinças, agulhas, canos e espelhos entre meus dentes. O máximo que posso fazer é responder que não entre resmungos.
Volto a olhar para a porta, será que continua nevando? Na rádio está tocando So What da P!nk, começo a cantar mentalmente, preciso verificar se eles tem essa música no Karaokê na próxima vez que eu passar por lá. Não sei se foi a cantoria ou o fato dela ter jogado muita água na minha boca, mas eu tive certeza de que iria vomitar naquele momento. Tusso, está tudo bem? Terminamos!
Até que não foi tão terrível assim. Prometo que passarei fio dental diariamente, assim não terei que voltar a deitar ali tão cedo. Ela me avisa que assim que marcarem o dia da minha cirurgia de retirada do ciso chegará uma carta na minha casa, e que eu não preciso me preocupar, isso será dentro de duas, no máximo três semanas. Só consigo sorrir e dizer que não estou tão ansiosa assim para esse dia. Rimos. Estou sorrindo sozinha enquando o vento corta meu rosto, afinal, enquanto eu me preparo para chegar em casa ela está se preparando para torturar uma nova vítima.
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